sexta-feira, fevereiro 19

Na época em que me preparava para defender o projeto de final de curso, um documentário, fruto de 18 meses de trabalho árduo, leituras incessantes e descobertas saborosas. Em uma de minhas conversas com a orientadora, construímos o que seria a última questão que me tiraria o sono durante o restante da graduação: na atual sociedade, somos tomados por uma enxurrada de imagens, talvez não fosse a hora de olhar para todos esses signos com menos preconceito? E mais, não seria a hora de começarmos a pensar em como inserir mais imagens – com qualidade – nesse universo? Isso deu muito pano para manga e anotações para o dr. maluco.
alguns anos se passaram... e num é que trabalhando na 13ª Mostra de Cinema de Tiradentes 2010, não me deparei mais uma vez com a velha questão? E o que me consola, é que dessa vez o assunto pairou no discurso do homenageado do festival, o cineasta Karim Aïnouz - o cara rodou Madame Satã, O Céu de Suely, Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo, entre tantos outros. Confira:


"...é preciso cantar, mais que nunca é preciso cantar..."
acho esses alguns dos mais belos e marcantes versos do nosso teatro. nem era nascido quando foi realizada a estreia do musical Liberdade, Liberdade... criação de Millôr Fernandes e de Flávio Rangel (só googlar), mas tive a oportunidade de ler o livro - quando tinha uns 12 para 13 anos de idade. a curiosidade nasceu por conta de uma foto em p&b do maior de todos, Paulo Autran, que ilustrava uma aspas da peça em um livro de literatura que nos remetia ao estilo literário do capítulo. De punho em riste, olhar fixo no futuro... aquela imagem nunca mais saiu da mente (ouço as vozes e seus ecos, vejo o brilho nos olhos do jovem da primeira fila), não menos pelo ímpeto revolucionário, que apresentava, mas pela necessidade da poesia como complemento para que se pudesse suportar aquele recorte do cotidiano. naquela época eu me via às voltas – graças ao meu irmão - com Vinícius de Morais, então não foi difícil compor a trilha sonora do início do primeiro ato da peça.

(Ainda com as luzes da platéia acesas, ouvem-se os
primeiros acordes do Hino da Proclamação da República.
1 Apaga-se a luz da platéia. Ao final da Introdução,
um acorde de violão, e Nara Leão canta, ainda
no escuro.)

NARA
Seja o nosso País triunfante,
Livre terra de livres irmãos...

CORO
Liberdade, liberdade,
Abre as asas sobre nós,
Das lutas, na tempestade,
Dá que ouçamos tua voz...
(Acende-se um refletor sobre Paulo Autran. Ele diz.)

PAULO
Sou apenas um homem de teatro. Sempre fui e sempre
serei um homem de teatro. Quem é capaz de dedicar
toda a vida à humanidade e à paixão existentes nestes
metros de tablado, esse é um homem de teatro.2
Nós achamos que é preciso cantar (Acordes da
Marcha da Quarta-feira de Cinzas3) – Agora, mais
que nunca, é preciso cantar. Por isso,
“Operário do canto, me apresento4
sem marca ou cicatriz, limpas as mãos,
minha alma limpa, a face descoberta,
aberto o peito, e – expresso documento –
a palavra conforme o pensamento.
Fui chamado a cantar e para tanto
há um mar de som no búzio de meu canto.
Trabalho à noite e sem revezamentos.
Se há mais quem cante, cantaremos juntos;
Sem se tornar com isso menos pura,
A voz sobe uma oitava na mistura.
Não canto onde não seja a boca livre,
Onde não haja ouvidos limpos e almas
afeitas a escutar sem preconceito.
Para enganar o tempo – ou distrair
criaturas já de si tão mal atentas,
não canto... Canto apenas quando dança,
nos olhos dos que me ouvem, a esperança”.


l. Trecho do Hino da Proclamação da República, de Leopoldo
Miguez e Osório Duque Estrada.
2. Baseado em textos de Louis Jouvet e de Jean Louis Barrault, do
livro Je Suis Homme de Théatre.
3. Marcha da Quarta-Feira de Cinzas, de Vinícius de Morais e
Carlos Lyra.
4. Versos de Geir Campos, do poema Da Profissão do Poeta.