terça-feira, agosto 11

Intransitivo

Mas me contaram que o silêncio cortante durou três corridas até a marca do pênalti…

- Obrigada pela companhia durante a noite. A voz doce e o leve sorriso nos lábios são marcas de Maria. Transforma tudo em brisa.

Pensou interrogações, elaborou travessões e até pensou em evocar aspas da curta algibeira, mas resolveu apenas pontuar furtivamente (pois não havia mais sol no quintal):  

- O elevador.
O elevador chegou, Maria. Sorriu - educadamente.
- Sim. Beijo!
- Beijo.

Só depois de ouvir o ruído do elevador descendo à portaria – ainda da fresta da porta, de onde tingia de outros tons a cena - que Maria Céu percebeu: o seu roupão azul pouco combinava com as tatuagens espalhadas pelo corpo e com os cabelos – negros e curtos cuidadosamente desajeitados que tanto diziam sobre aquela mulher.

- Nossa. Exclamou, depois de fechar a porta, caminhar para a sala e se deter ao passar em frente ao grande espelho da sala. Percebeu que a sombra também azul ainda dava contornos aos olhos castanhos.

Suspirou. Recobrava tepidamente os sentidos. Tentava realinhar os pensamentos. Mas, sem elaborar muito, se pôs a organizar os objetos espalhados pela sala: duas taças, um cinzeiro lotado, almofadas pelo chão, potes com queijos em cubos, uma garrafa de vinho aberta e pela metade, sem a rolha, as cadeiras fora da mesa, violão, papel de cartas, canetas coloridas espalhadas sobre o tapete e um carinho tímido sobre a poltrona marrom, em baixo da janela.

Serviço rápido. Quinze minutos foram mais que necessários para que Maria pudesse apagar aquela trilha que a levou ao quarto de dormir. Sentou-se na cama, ao lado do criado-mudo. Iluminada apenas pelo abajur improvisado em uma antiga garrafa de uísque, retirava os anéis, os cordões e os brincos. Como se estivesse seguindo um protocolo, depositava um / a / um na velha caixinha de metal – presente da vó Dinha.

Como Otis, a máquina fria carregadora de gentes, aquela caixa também tinha tarefa de carregar os pontos e as vírgulas de Maria. Lembranças. “Coisa de quem prefere existir a simplesmente viver”, costumava dizer.

Ritual cumprido. Encaminhou-se em direção ao banheiro. Passou pelo portal e se deteve frente ao pequeno espelho no armário pendurado em cima da pia. Abriu a torneira da pia e começou a vasculhar as gavetas à procura de um lenço umedecido para se despir das cores daquela noite que ainda estava em seu rosto.

Na primeira gaveta, do lado direito.

Com a embalagem nas mãos, olhar agora fixo no espelho, começou a puxar a primeira folha da caixa. Mas a textura diferente do papel lhe chamou a atenção.

Observou mais atentamente e descobriu ali (sem olhar de espanto), escrito com letras tímidas, trêmulas e irregulares, um bilhete: “… só vejo flores em você. Um Beijo,”.

Com a ponta dos dedos indicadores e polegares examinou mais uma vez a textura do papel, fitou o seu reflexo no espelho. Se virou calmamente para a porta e caminhou tomando a direita do corredor que ligava a sala ao quarto.

Sentou-se ao lado do criado-mudo. Ascendeu o abajur. Pegou em seguida a caixinha da vó Dinha. Abriu o cubo de metal e encontrou, por sob as quinquilharias, um envelope amarelo. Pegou o bilhete que carregava consigo, releu, e – com todo o cuidado – o guardou junto com as outras sedas.

Realmente não havia sol no quintal.

...

Se havia uma coisa que encantava Maria na região Central de Belo Horizonte era: os prédios antigos em estilo eclético e seus elevadores, máquinas frias de carregar gentes. Bastava o ascensorista perguntar o andar e fechar as grades para ela iniciar o exame minucioso. Sabia que todos tinham no chão, perto da porta, uma tatuagem: Otis, em letras douradas e fonte clássica.

 - Aqui há Otis! Exclamava silenciosamente como um mantra.



Ela não sabia porquê, mas, com aquele envelope na mão, se pegou repetindo o seu mantra:

- Aqui há Otis!

E com um sorriso discreto nos lábios, fechou a caixinha. Porém, antes de voltá-lo para o criado…

- Me dói... dói muito, sabe? A interrogação ecoa pelas seis paredes do quarto sem Maria conseguir precisar bem sua origem. - Será que estou maluca? Pensou, fixando sua atenção no silêncio.

- Quando eu menos espero, vem e você e me corta. E esse corte sangra. A vida. A flor. Você envelopa tudo amarra em fitas de pano coloridas e deposita em mim, seu altar. Pensa que é impunimente…

- Não acredito que estou ouvindo uma caixa!? Maria diz, com o objeto mais próximo do rosto e olhar incrédulo. Aos poucos, e ainda desconfiada, ela cria coragem e arrisca uma pergunta:

- Caixa?!, Do quê você está falando?

- Falo dessas flores de amor que brotam em você.

- Que flores? Diz da que colhi no alto da montanha, aquela verde com tons de lilás, cravejada por pedras coloniais que dá de frente para matriz? Risos. Aquilo é passado.

- Tenho aqui comigo, a lembrança feliz e comovida do seu caminhar feliz pelos campos da nascente do Jequitinhonha, Maria. Tenho aqui. Quer ver? Papel de seda vermelho, dobrado em 8 quadrados, 2012. Descrição: “linda flor do centro de Minas que enfeita a nascente do braço do mar, um beijo. Aurélio.”.

- Sim. Mas é passado. O que passou, passou. Disse Maria.

- Será?, desfiou a caixa de metal. Respire novamente aquele ar que lhe cercava no alto daquela montanha verde-lilás. Tente. Feche os olhos. Sinta. Relaxe. Sem mais ou menos, nem um copo ou um corpo. Deite, durma. Não tenha medo de acordar, mesmo que lhe assuste o nascer do dia.

Desta vez, me contaram que o silêncio cortante durou apenas uma corrida até a marca do pênalti…

Subitamente, Maria colocou a caixa em cima do criado, sem muitos cuidados, e correu para o banheiro. Com os braços esticados, mãos apoiadas no bojo da pia e cabeça baixa, ela observava a água indo pelo ralo – a torneira ainda estava aberta. Ela tentava, mas não entendia aquele bolor que sentia se formar perto do umbigo.

Os olhos marejavam, então, decidiu fechá-los.

- E eu nem sei uma oração qualquer, pensou. Pensou.

- Meu Santo Anjo…, buscou nas memórias da infância.

De olhos ainda fechados, sentia apenas carinhos leves percorrerem as bochechas até o canto dos lábios. Mas continuou a oração qualquer.

Ficou em paz. Se deu conta de abrir os olhos e se deparou com um mar de pétalas de margaridas dentro do pequeno bojo da pia.

Sem reação, ergueu-se lentamente e encarou o seu rosto refletido no espelho. Foi aí que percebeu:

- São flores. Sorriu.